Uma falsa bandeira do Canadá é exposta em protesto contra a exploração das areias betuminosas, realizado em Londres em fevereiro. O preto, inexistente na bandeira original, é menção direta a essa atividade altamente poluidora. Há não muito tempo, o Canadá era famoso por paisagens naturais de tirar o fôlego e por seus belos e imaculadamente limpos centros urbanos, como Vancouver e Toronto (respectivamente, a primeira e a quarta melhores cidades do mundo para morar, de acordo com o ranking deste ano da revista inglesa The Economist). De algumas décadas para cá, porém, essa imagem idílica tem sofrido uma piora substancial, graças a um empreendimento tão grandioso quanto ambientalmente polêmico: a exploração das areias betuminosas (também chamadas “areias oleosas”) no oeste do país. Conhecidas em inglês como oil sands ou tar sands, as areias betuminosas canadenses são gigantescos depósitos de betume localizados no norte da província de Alberta, com ramificações na vizinha Saskatchewan (veja mapa na pág. 31). Forma semissólida de petróleo cru, mais pesado e de menor valor comercial, esse betume impregna as rochas, compostas basicamente por areia e argila. Quase totalmente imóvel dentro da rocha matriz, o betume não flui para dentro de um poço, como o petróleo cru convencional, e tem de ser extraído por métodos diferentes.
O maior depósito de areia betuminosa do mundo fica em Alberta: o Athabasca, nome do rio que atravessa a região. Ele e dois depósitos menores, Peace River e Cold Lake, perfazem uma área de cerca de 140,2 mil quilômetros quadrados, pouco menor que a do Amapá. São terras escassamente povoadas, nas quais predominam a floresta boreal e jazidas de turfa. A particularidade maior do depósito de Athabasca é que, ali, o petróleo está perto da superfície – cerca de 10% do campo fica a menos de 75 metros de profundidade. É praticamente uma mina a céu aberto, o que permite que o óleo seja retirado por técnicas de mineração em larga escala.
A extração de petróleo na região começou modestamente, em 1967, num empreendimento da Great Canadian Oil Sands Limited (subsidiária canadense da Sun Oil Company, dos Estados Unidos, hoje independente e renomeada Suncor Energy), mas as cotações internacionais da commodity tornaram o negócio desinteressante por várias décadas. Foi só com a subida dos preços no início deste século que a exploração se consolidou ali. Já em 2001, o Canadá se tornou o maior exportador de petróleo para os Estados Unidos, superando a Arábia Saudita. As areias betuminosas canadenses são um verdadeiro mar de petróleo. Segundo uma estimativa do governo de Alberta divulgada em 2007, é possível extrair de lá, a um custo viável, cerca de 173 bilhões de barris. Isso faz do Canadá o dono da segunda maior reserva petrolífera provada do mundo, atrás apenas da Arábia Saudita. No total, calcula-se que haja na região 1,7 trilhão de barris – praticamente o mesmo volume de reservas provadas de petróleo convencional em todo o mundo.
No entanto, diferentemente do petróleo saudita, fácil de retirar, o das areias betuminosas canadenses envolve formidáveis custos ambientais. Até meados de 2008, a mineração respondia pela derrubada de 470 quilômetros quadrados de floresta e pela criação de 130 quilômetros quadrados de lagoas de decantação repletas de resíduos tóxicos. Ambientalistas e profissionais da saúde alertam que essa atividade polui substancialmente a atmosfera, ameaça os ecossistemas da área, mata peixes e já contabiliza casos de câncer em humanos.
Mina de betume da empresa Syncrude no depósito de Athabasca. O que era antes floresta boreal deu lugar a uma paisagem em que o cinza e o negro predominam. A ativista ambiental canadense Maude Barlow chama a região de “Mordor”, o sombrio centro do mal na obra O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien.
“As areias betuminosas do Canadá constituem uma das maiores ameaças ao nosso planeta”, declarou o cientista da Nasa James Hansen, um dos nomes mais importantes das pesquisas sobre o aquecimento global. Para Hansen, a ameaça é dupla. Em primeiro lugar, produzir petróleo das areias betuminosas polui muito mais do que o processo de extração convencional. Além disso, a atividade prejudica um dos melhores instrumentos de redução de carbono da Terra: a floresta boreal canadense. Segundo o cientista, ela armazena mais carbono por hectare do que qualquer outro ecossistema e, quando é derrubada para o desenvolvimento da indústria das areias betuminosas, muito desse carbono é perdido. Hansen ressalta ainda que a floresta contém boa parte da água doce da América do Norte, além de abrigar cerca de 5 bilhões de aves migratórias e algumas das maiores populações remanescentes de alces, ursos, lobos e caribus do mundo.
Simon Dyer, pesquisador do Pembina Institute, da Universidade de Alberta, também ataca pesadamente a indústria das areias betuminosas. “São a mais suja fonte de petróleo em qualquer lugar do mundo e há muito pouca regulação sobre elas”, declarou ele a John Vidal, do jornal inglês The Guardian, que visitou a região em 2008. De acordo com Dyer, a energia necessária para produzir um barril de petróleo em Alberta significa multiplicar por três (ou até por cinco) as emissões de gases-estufa computadas na produção de um barril de petróleo convencional. Isso se explica porque é preciso escavar para retirar o betume da terra, separar o petróleo da areia – dependendo da técnica empregada, com o uso de muita água e/ou de muito gás natural – e, por força de sua qualidade inferior, refiná-lo pesadamente. Só em água, usam-se ali três a quatro barris na obtenção de um barril de petróleo; e toda a reserva de gás natural canadense dá conta de apenas 29% do betume de Alberta.
Vistas aéreas de uma instalação da petrolífera Suncor, perto da cidade de Fort McMurray (acima), e de uma mina de extração de betume (abaixo). A exploração do petróleo das areias betuminosas só se tornou economicamente viável no início deste século, e com ela o Canadá passou a ter a segunda maior reserva provada do mundo.
As ideias para superar essas dificuldades só aumentam o surrealismo que envolve a questão. A repórter Daniela Chiaretti, do jornal Valor Econômico, que visitou a região no ano passado, comentou em seu artigo sobre o tema que se fala em energia nuclear como substituta do gás. Segundo ela, o diretor da organização Global Forest, Peter Lee, calcula que seriam necessárias 14 usinas para atender à demanda – o que levou Melina Laboucan-Massimo, a Tar Sands campaigner do Greenpeace, a lamentar ironicamente: “O Canadá será o único país do mundo a usar energia nuclear para produzir combustíveis fósseis.”
A sedução do dinheiro
Terra de florestas e rica vida selvagem, Alberta estava longe de virar um polo econômico relevante antes da exploração das areias betuminosas. Mas o petróleo tem um impacto tão grande nas finanças da província que boa parte da população prefere fechar os olhos para os problemas ambientais gerados pela extração. O Instituto de Pesquisa Energética do Canadá prevê que, em 25 anos, o petróleo das areias betuminosas poderá somar US$ 1,8 trilhão ao produto interno bruto do país e criar 456 mil empregos. Em abril de 2008, a região abrigava 91 projetos de exploração e sua maior cidade, Fort McMurray, já vivia em pleno boom imobiliário (ao lado, casas à venda por US$ 450 mil).
O betume (no detalhe) chega a aflorar à superfície, como nos depósitos da foto maior, localizados às margens do rio athabasca, que corta a região.
Daniela sobrevoou a região das areias betuminosas e seu relato oscila entre a tristeza e o horror. “O que se vê é um cenário de Mad Max, só que não é ficção”, escreveu. “O mundo parece ter perdido a cor, só há tons de cinza e negro, enormes lagos escuros de águas paradas, canteiros de obras e um frenesi de caminhões.” Ao nível do solo, o cheiro de ovo podre típico da indústria é onipresente. Segundo Daniela, a ativista ambiental canadense Maude Barlow chama a região de “Mordor”, numa referência ao reino das sombras da obra O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien.
A política tem papel importante na montagem dessa versão peculiar do inferno. Até 2006, o governo canadense estava nas mãos do Partido Liberal, sensível às questões ambientais – em 2002, ele havia ratificado o Protocolo de Kyoto, pelo qual se comprometia, até 2012, a reduzir as emissões de gases-estufa em 6% ante os níveis de 1990. O cumprimento da meta já parecia distante em 2006, quando os liberais cederam o poder ao Partido Conservador, mas o novo primeiroministro – Stephen Harper, um representante de Alberta – mostrou que a situação poderia piorar ainda mais ao divulgar seu primeiro orçamento nacional, no qual não destinou um único centavo à implantação do Protocolo de Kyoto.
Portas abertas para os asiáticos
Pressões de origens variadas têm levado empresas norte-americanas e europeias a rever sua ligação com as poluentes areias betuminosas canadenses. A anglo-holandesa Shell, por exemplo, enfrenta uma ofensiva de acionistas que desejam ver a companhia (a qual se declara defensora do meio ambiente) fora de Alberta. Uma campanha da instituição ForestEthics, dedicada a interromper o uso de petróleo das areias betuminosas por empresas norte-americanas, tem ampliado o número de adesões, e o Pentágono está reduzindo suas compras dessa fonte, a fim de atender a uma lei ambiental de 2007. Mas o governo canadense não se abala com as defecções: anunciou em fevereiro que está abrindo mais espaço para empresas chinesas (entre elas a estatal PetroChina) e de outros países asiáticos carentes de petróleo, como Japão e Coreia do Sul, investirem na região. A sequência do desastre ambiental está, portanto, garantida.
Na época, Harper anunciou que seu governo desenvolvera um novo plano para lidar com as mudanças climáticas, sem detalhar seu conteúdo. O que se viu depois, porém, foi um aumento sistemático das emissões canadenses de gases-estufa, impulsionado pelo betume de Alberta. Em seu relatório Energy [R]evolution, o Greenpeace- Canadá informa que as emissões saltaram de 592 milhões de toneladas, em 1990, para 721 milhões, em 2006 – 21,7% acima dos níveis de 1990 e 29,1% a mais do que as metas do país em Kyoto.
Alberta abriga apenas cerca de 10% dos 34 milhões de canadenses, mas emite 32% do volume de gases-estufa do país. A indústria petrolífera divulga que tem se esforçado para mudar esse quadro, fazendo, por exemplo, replantio de árvores. Mas ninguém sabe como elas vão se desenvolver naquele ambiente deteriorado. Segundo Daniela Chiaretti, Don Thompson, presidente da Oil Sands Developers Group (associação das petroleiras), afirma que uma “área grande” já foi reconstituída, mas pede que se relativize o que é visto hoje: “(...) as árvores da floresta levam 80 anos para crescer, e as que plantamos ainda parecem grama. É preciso lembrar que essa indústria só tem 40 anos de idade.” Outra iniciativa é a CCS, sigla da tecnologia de sequestro de carbono, na qual Alberta investe US$ 2 bilhões. Mas, como Emily Rochon, campaigner de clima e energia do Greenpeace International, lembrou a Daniela, “os projetos CCS não ficarão prontos em 2020, e a mudança climática está ocorrendo agora”.
O desenvolvimento da indústria da areia betuminosa canadense explica o comportamento esquivo do país na Conferência do Clima de Copenhague, em 2009. Stephen Harper comprometeu- se ali a cortar – mais uma vez, sem detalhar como –, até 2020, as emissões de carbono em 20% ante os índices de 2006. Isso corresponde a uma redução de meros 3% na comparação com os índices de 1990 (pelo Protocolo de Kyoto, países desenvolvidos como o Canadá deveriam reduzir a emissão de gases-estufa em pelo menos 5,2% ante os níveis de 1990). A meta é tão pífia que Quebec, Ontário e Colúmbia Britânica, as três mais importantes províncias do país, estabeleceram para si objetivos bem mais rigorosos: reduções de respectivamente 20%, 15% e 14% em relação aos índices de 1990. Na contramão, Alberta prevê um aumento de 58% em suas emissões.
Acima, um manifestante protesta diante do escritório central da gigante petrolífera BP, em Londres, em ato realizado em setembro de 2009 contra a presença da empresa na região das areias betuminosas canadenses. A soma dos três grandes depósitos de Alberta (no mapa abaixo) dá uma área pouco menor que a do Amapá.
Poucas vezes um país mudou tão radicalmente sua imagem no contexto mundial. George Monbiot, do jornal The Guardian, reflete esse sentimento ao concluir um recente artigo sobre o tema: “Sinto-me estranho ao escrever isso. A ameaça imediata ao esforço global de sustentar um mundo pacífico e estável não vem da Arábia Saudita, do Irã ou da China. Vem do Canadá. Como isso pode ser verdade?”
Fonte:Revista Planeta
Documentário da NatGeo.
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